Já diziam os latinos

"primum uiuere, deinde philosophari"

É de facto um preceito sensato. Assegurar os seus meios de subsistência em primeiro lugar (viver primeiro) e, só depois, então, filosofar. É um pouco o que me vai acontecer nos próximos tempos. A tradução de um livro com cerca de 500 páginas vai-me manter ocupado durante uns tempos. Não tanto como aquilo que seria necessário (as traduções técnicas são sempre para ontem).

Como perceberam trata-se de um livro técnico, não de um de literatura. Perguntam-me, por vezes, porque não traduzo literatura. Bem, há pelo menos duas razões: 1) ninguém mo pediu; 2) a tradução técnica paga melhor.

Quando às vezes digo isto, as pessoas ficam um pouco espantadas, pois obviamente não sabem muito bem como estas coisas funcionam. Para muita gente, tradutor sério e respeitado é aqueles que traduz literatura. Os outros, os tradutores técnicos (chamemos-lhe assim), não lhes merecem o mesmo respeito, pois afinal traduzir manuais ou outras coisas não é propriamente tradução a sério. É claro que quem assim pensa, não sabe que para traduzir não basta saber línguas... antes bastasse.

Estienne Dolet (1509?-1546), tradutor francês, que morreu na fogueira por causa de uma tradução que fez de Platão em que um "rien" pareceu dar ideia às autoridades eclesiásticas de que Dolet estaria a dizer que a alma não era imortal, disse em 1540, no seu La manière de bien traduire d'une langue en autre:

"Il faut que le traducteur entende parfaictement le sens et la matière de l'autheur qu'il traduit" (p. 13) Este era o primeiro preceito.

O segundo preceito "que le traducteur ait parfaicte congnaissance de la langue de l'autheur qu'il traduict; et soit pareillement excellent en la langue en laquelle il se mect à traduire" (p. 14/15).

Dolet dá ainda outros três preceitos para a realização de uma boa tradução São preceitos muito gerais e sucintos, mas que demonstram uma tomada de consciência sobre os problemas da tradução.

Mas é certo que praticamente toda a teorização sobre tradução feiita até meados do séc. XX dedicava-se quase exclusivamente à tradução literária. Friedrich Schleiemacher (1768-1834), no seu muitíssimo famoso texto Über die verschiedenen Methoden des Übersezens (Dos diferentes métodos de traduzir) de 1813, distingue dois tipos de tradução: a interpretação e a tradução. Aquilo a que ele chama interpretação seria a actual tradução técnica e geral. Com o nome de tradução "a sério" são mereciam as traduções de obras literárias e académicas. Da chamada "interpretação" (não confundir com o sentido moderno do termo), Scheleiemacher diz (uso a tradução de Douglas Robison in Western Translation Theory, p. 227):

Translating in this field is thus a merely mechanical task that can be performed by anyone with a modest proficiency in both languages, and where, so long as obvious errors are avoided, there is little difference between better and worse renditions." No mínimo podemos dizer que ele não tinha esta tradução em grande conta.

Quanto a tradução "propriamente dita" (ainda segundo Schleiemacher, p. 227):

The situation is totally different in art and scholarship, and generally wherever thought, one with the word, reigns more securely than the thing of which the word is but an arbitrary and yet well-established sign. For how infinitely and intricate the business becomes here! What accurate knowledge, what command of both languages it hten requires!" Que diferença de tom. E a partir daqui, e só para as traduções literárias e académicas, é que Scheleimacher desenvolve a sua teoria sobre os diferentes métodos de tradução.

Mas quem pensar que esta dicotomia entre tradutores literários e não-literários é coisa do passado (em termos de público em geral) está muito enganado. Em 2003, num seminário de tradução da União Latina no Porto, Yves Gambier, presidente da European Society for Translation Studies (EST), começou a sua comunicação assim "Les traducteurs littéraires et non-littéraires exercent-ils une même profession? Peuvent-ils recevoir en commun une formation appropriée?". Mais adiante, propondo-se a ultrapassar esta dicotomia:

"Cette opposition [literária/não-literária] reflète une perception de la traduction trop souvent encore considérée en dehors de son environnement socio-économique, y compris dans nombre d'entreprises où la traduction est mêlée à la communication, à la publicité, au marketing, à l'iexport-import, aux services de langues. Il n'y a pas de base sérieuse pour reproduire à l'infini cette distinction: d'une part, la traduction littéraire est souvent qualifiée ainsi uniquement à partir du texte de départ; d'autre part, la traduction non-littéraire donne lieu à des débats souvent séparés sinon marginalisés en traductologie (théorie) et lors de conférences, quand bien même l'immense volume du travail quotidien les concerne."

Depois de dar vários exemplos em que demonstra que o processo de tradução literária não é assim tão diferente dos processos da não-literária, Gambier afirma:

"Ils [os tradutores] doivent negocier avec leur donneur d'ouvrage, trouver un accord sur la prestation à fournir, recevoir et vérifier le texte à traduire, l'analyser et faire les recherches documentaires et terminologiques appropriées, transférer (en réflechissant sur les stratégies idoines et les degrés d'acceptabilité de leurs décisions et propositions), relire et réviser, adpater et corriger (l...), mettre en forme et livre."

Por isso, na conclusão, Gambier afirma ainda:

"Le traducteur (littéraire et non-littéraire) a à se faire admettre sa spéficié, parmi les "écrivants" (auteurs, rédacteurs, producteurs de sites, créateurs de documentations, écrivains). Et pour ce faire, il doit toujours préciser et maitriser ses compétences, ses rôles.

La dichotomie littéraire/non-littéraire appartient au passé, à une époque où certains pouvaient se payer le luxe d'être amateurs éclairés (plus ou moins riches ou désargentés) et d'autres se faisaient tâcherons pour survivre. Dans les deux cas, le traducteur était servile et les communications multilingues étaient réduites dans un monde qui ne connaisait pas encore la mondialisation accélérée, concurrentielle et uniformisante."

Estou perfeitamente de acordo com Gambier, não importa a natureza do texto, há uma certo número de procedimentos comuns que o tradutor tem que fazer sob pena de não fazer um serviço de qualidade.

A tradução é uima profissão apaixonante, pelo menos para mim, mas, frequentemente muito desgasttante, mesmo fisicamente. Qual é o tradutor que não fez noitadas para entregar as suas traduções a tempo?

Por isso, quando alguém não compreende como é que eu posso, tendo eu uma formação de Letras, estar empenhadíssimo numa tradução de engrenagens ou de tribologia, não percebem, nitidamente, o desafio que estes temas nos colocam (a minha formação anterior a ter mudado para Letras, que me levou primeiro para Engenharia é claro que me ajuda, pois ainda tenho muitas noções de matemática, física, geometria descritiva, mecânica, etc.).

Não percebem também que, tendo um método de trabalho estabelecido e uma boa capacidade de saber onde localizar a informação necessária, pode-se fazer traduções muito variadas. E que por isso, não importa o tipo de tradução, e ao contrário do que afirmou Schleiemacher, qualquer tradução tem que ter, independentemente do tema e da forma, qualidade.

Bom, parece-me que o pequeno texto que eu ia fazer para justificar o facto de nos próximos tempos poder não haver um tão grande número de actualizações do blog (embora vá tentar manter um ritmo diário), descambou para um texto sobre tradução. Mas essa é a minha paixão, para além de ser a minha profissão.

Post scriptum: tenho, é verdade, algumas traduções literárias feitas, sobretudo poemas, mas não tenciono publicá-las. É apenas o gozo que dá que me leva a fazê-las. Isto é, no meus tempos livres, faço tradução na mesma!

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