Córdova, Granada e afirmações inexactas...

Publi-reportagem ou apenas algum desconhecimento ou deslumbramento? Fico sempre na dúvida quando vejo artigos como aquele que é assinado por Gabriela Oliveira, intitulado "Espanha árabe", no Notícias Magazine n.º 694 de hoje. (atenção: texto longo)

Porquê esta sensação? Talvez, por exemplo, por frases como esta:
Córdoba era então [séc. X] a cidade mais próspera e culta da Europa, reunindo os mais importantes pensadores, poetas e artistas à volta da corte.
É claro que o facto de, também, no séc. X, o Império Bizantino ter atingido o seu apogeu (tinha conseguido bater os árabes na Síria e na Arménia), não entrou em consideração na redacção desta frase. A Europa Ocidental estava ainda a sair de um período complicado da sua história, mas o Império Bizantino, herdeiro do Império Romano do Oriente, continuava a sua marcha vindo directamente da Antiguidade tardia. E, que eu saiba, a sua capital Constantinopla fica na Europa. A afirmação é, no mínimo, imprecisa.

O artigo continua entre superlativos e hipérboles aos árabes, sua arte, cultura, etc... (uns merecidos, outros nem por isso), mas os dois últimos parágrafos são mesmo a cereja em cima do bolo (destaques meus):
Andaluzia, terra de poetas, filósofos, artistas... Terras de memórias imperecíveis da presença árabe. Ainda hoje subsistem na língua portuguesa cerca de seiscentos vocábulos árabes. Arroz, armazém, almofada, laranja, limão, alcântara, almeida, álgebra... são apenas algumas das muitas palavras que usamos no dia-a-dia. A contribuição do conhecimento árabe desempenhou um papel crucial no campo das matemáticas, da astronomia, da agricultura, das ciências náuticas. «É preciso não esquecer que foram os muçulmanos que fizeram perdurar os clássicos da Antiguidade, a cultura greco-latina, traduzindo-os primeiro para árabe. Só mais tarde, a partir do séc. XI, ficaram acessíveis em latim. A Península Ibérica foi a placa giratória a partir da qual a sabedoria antiga se propagou pela Europa, nas diferentes disciplinas», comentou Manuel Gandra. O extremismo era naquela época panágio do cristianismo, basta recordar a Inquisição e as Cruzadas contra os «pagãos infiéis».
Ao percorrermos a Andaluzia fazemos uma viagem no tempo, que evoca outros locais históricos do nosso país. Córdoba e Granada reavivam memórias de um património árabe que nos é comum. Outrora todos fazíamos parte do grandioso al-Andalus.
Bem, estes dois parágrafos têm afirmações inexactas e que não respeitam a verdade histórica, para além da última ser verdadeiramente duvidosa. Comecemos pela primeira afirmação destacada por mim.

A afirmação de Manuel Gandra é pelo menos inexacta pela sua generalização. Se ele se referir ao facto de Aristóteles ou Platão terem sido primeiro traduzidos para árabe e só depois para latim, está certo. Mas, é claro que os autores latinos foram preservados sobretudo pela Igreja na Europa Ocidental, mesmo autores que poderiam, pelo conteúdo das suas obras, serem desprezados. Por exemplo, Catulo (séc. I a.C.), cujos poemas estavam muito longe da moral cristãe e que são mencionados no séc. VII d.C. por Santo Isidoro de Sevilha (Origines 6, 12, 3; 19, 33) ou ainda por Ratherius, em 965 d.C., que declarou formalmente ter lido os seus poemas (Patrologia latina de Migne, t. 136, p. 752). Depois destas referências, o texto mais antigo completo que conhecemos de Catulo data do séc. XIV. Onde foram conservados os sucessivos manuscristos que fizeram chegar até nós estes poemas? Provavelmente nas bibliotecas das catedrais e mosteiros.

Outro facto, se calhar desconhecido da maioria, é o facto de, por exemplo, Virgílio (séc. I a.C.) não ter entrado na lista de livros proibidos no tempo de Carlos Magno devido à sua eglóga IV em que fala de uma era messiânica (com a vinda de um menino), que fez com que Virgílio fosse conservado no Império Carolíngio (apesar da égloga II). Muitos autores latinos foram lidos na Idade Média, se calhar em maior número do que agora.

Por isso, a frase peca por uma generalização excessiva que só é verdadeira num número limitado de casos, isto é, em autores gregos. Ainda a este propósito, deve-se dizer que, apesar do contacto dos muçulmanos com a cultura greco-latina, eles jamais a assimilaram. Socorro-me para este ponto do que escreveu Francisco Rodríguez Adrados (universitário espanhol) que escreveu o seguinte (ABC, 14/08/2005, "Choque de civilizaciones? Pues sí"):
Porque se habla mucho dos los califas ilustrados - Harum al Rashid, Al Mamún, Al Mansur, los fatimíes de Egipto - que hacían traducir al árabe la sabídura griega que luego creció en el mismo mundo árabe (Al Andalus incluido, por supuesto) e pasó a la Cristiandad, en latín o castellano, a través en parte de España. Hubo el notable intento de combinar el Corán con Platón y Aristóteles, paralelo al de Santo Tomás y otros entre los cristianos.

Quedó en nada. Por qué essos admiradores del Islam medieval (con razón, pero sin ella en sus ataques al Cristianismo), por qué no dicen que esa flor se agostó en el siglo XI, con los selyúcidas, los almorávides, los almohades? los almohades? Que Averroes, un aristotélico, acabó confinado en Lucena, Al Motamid desterrado en África? La concordia entre el Corán y los griegos fue imposible y los filósofos fueron tenidos, más o menos, por heréticos. En Occidente triunfaron, en el mundo musulmán no. Y el islam se volvió impenetrable, esta es la cuestión. La base de todo.
Para além de que os muçulmanos não fizeram propagar toda a filosofia antiga pela Europa (afinal os textos dos autores latinos estavam disponíveis), também acabaram por não recolher grandes frutos dos autores gregos, pelo menos em alguns campos do saber.

A segunda afirmação destacada é ainda mais extraordinária pois não é apenas inexacta, é completamente falsa. Em primeiro lugar, precisamos de situar no tempo quer a Inquisição, quer as Cruzadas. A Inquisição foi criada no início do séc. XIII, dirigida contra os heréticos (por exemplo, os cátaros) e o seu papel declinou bastante no séc. XV. Não esquecer que a Inquisição espanhola (e mais tarde a portuguesa) são de natureza muito diferente dessa primeira Inquisição, pois estavam sob controlo apertado do Estado (eram inquisições reais ao serviço do estado) e não da Igreja.

Em segundo lugar, as Cruzadas iniciaram no final do séc. XI (Jerusalém foi conquistada em 1099). Mas, pode dizer-se que o espírito de cruzada foi antecedeu as próprias cruzadas, com o afluxo de francos à Espanha medieval para ajudar Afonso VII de Castela à derrota de Zalaca (1086) às mãos dos Almorávidas. Ora estes almorávidas, segundo o Dicionário de História Universal de Michel Mourre, "devido ao seu fanatismo intolerante, ao seu rígido ritualismo, provocaram graves prejuízos à brilhante civilização que florescia no princípio do séc. XI" (C.Leitores, vol. 1, pág. 56). Os Almorávidas foram derrubados pelos Almóadas, em 1147, que queriam um regresso às fontes religiosas essenciais do islão, afirmando a crença absoluta na unidade divina, e que acusavam os outros muçulmanos de serem politeístas. Também não haveria muito tolerância por estes lados.

Por outro lado, a conquista de Jerusalém por parte dos turcos seljúcidas em 1078 tornaram também mais difícil a vida das populações cristãs e judaicas na Terra Santa, bem como as peregrinações que os cristãos ocidentais costumavam fazer.

Por fim, não esquecer, para aqueles que pensam que as cruzadas foram uma agressão ao islão, que o primeiro agressor for o islão quando conquistou Jerusalém em 636 ao Império Bizantino. Os islão expandiu-se na ponta da espada e foram os muçulmanos quem primeiro atacou os cristãos.

Por outro lado, há um certo mito quando a propalada tolerância dos muçulmanos para com as minorias que vivem em estados controlados por muçulmanos. Será que ninguém ouviu falar na palavra "dhimmi". Os infiéis, segundo a lei corânica, serão sempre cidadãos de segunda classe que nunca terão os mesmos direitos que os cidadãos muçulmanos. E isso era o que acontecia na Espanha árabe.

A este propósito aconselho a leitura do texto "Jihad begot the Crusades" (parte I e parte II), de que transcrevo aqui a conclusão:
It is ahistorical and frankly absurd to separate the Crusades from the anti-Christian jihad wars that antedated and precipitated them. Four and one-half centuries of devastating jihad conquests (i.e., 632-1095 C.E.), and the cruel imposition of dhimmitude on the vanquished, primarily Christian populations, finally engendered a sustained, organized and violent response when Christendom perceived its very survival to be imperiled. Jacques Ellul has characterized the origins and effects of this transformation: [80]

…the Crusade is an imitation of the jihad. Thus the Crusade includes a guarantee of salvation. The one who dies in holy war (i.e., jihad) goes straight to Paradise, and the same applies to the one who takes part in a Crusade. This is no coincidence; it is an exact equivalent. The Crusades, which were once admired as an expression of absolute faith, and which are now the subject of accusations against the Church and Christianity, are of Muslim, not Christian origin…The nonviolence of Jesus Christ changes into a war in conflict with that waged by the foe. Like that war, this is now a holy war.

The devastating Islamic institution of jihad must be acknowledged, renounced, dismantled, and relegated forever to the dustbin of history, by Muslims themselves. As Professor Walid Phares, in a frank, astute commentary entitled “Jihad is Jihad”, noted: [81]

In the Christian world, modern Christians outlawed crusading; they did not rewrite history to legitimize themselves. Those who believe that the jihad holy war is a sin today must have the courage to de-legitimize it and outlaw it as well.
Na Idade Média o extremismo era apanágio de todos e qualquer outra asserção é pura e simplesmente falsa, para além de demonstrar pouca informação ou desconhecimento sobre o assunto (chama-se "emprenhar pelos ouvidos", toma-se acriticamente como boas as afirmações que a inteligentsia vai produzindo).

A terceira afirmação destacada não tem qualquer sentido. "Outrora todos fazíamos parte do grandioso al-Andalus". E daí? Outrora não fizemos nós parte do grandioso Império Romano também?

Também aqui recorro a Rodríguez Adrado:
De diálogo, alianza de civilizaciones, «todos somos andaluces», poco. Un gran intercambio, sí, de elementos materiales, pero ideológica y socialmente, Occidente e Islam se dieron las espaldas. Lo esencial: el Islamismo jamás se asimiló, como tantos pueblos y religiones, a la tradición greco-romana, la que hizo posible la apertura de Occidente a una nuova sociedad, a una literatura y un pensamiento más abiertos. Jamás. pese a los influjos helenizantes en los siglos del VIII al X u XI, occidentalizantes desde el XIX, en su línea central los musulmanes han mantenido un pensamiento conservador estable, teocrático.
O que me motivou a escrever esta entrada não foi uma tentativa de diminuir a civilização árabe que esteve presente na Península Ibérica de 711 a 1492 e, que por isso mesmo, teve que deixar influências por estas terras. Mas, se antigamente quase se ignorava a influência dos árabes na península, agora não se pode passar para o outro extremo, isto é o de hiperbolizar a importância dos árabes na península, comparando-os com os cristãos, considerando estes pouco mais do que neandartais. Os árabes tiveram uma civilização brilhante, mas que parou de evoluir, ao contrário da civilização ocidental que aproveitou tudo o que de bom havia nas outras culturas para se desenvolver. E, não nos podemos esquecer, que em Constantinopla estava uma civilização que nada devia aos árabes.

Artigos como estes parece-me publi-reportagem paga por algum país árabe (o que não acredito) ou apenas, aquela mania muito ocidental, de deslumbramento paroquial perante uma civilização que não a nossa, que, desde de logo, se considera como superior a nossa.

Ainda mais haveria a dizer sobre este artigo, mas vou-me ficar por aqui.

Comentários

Marco Oliveira disse…
A ler e reler.
Grande post!
Parabens!

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