O referendo ao aborto

Conforme se sabe, Jaime Gama aceitou a proposta do PS (e apoiada pelo BE) sobre o referendo ao aborto. É claro que esta proposta, mais do que o cumprimento de uma promessa do PS (não faltaria tempo para realizar o referendo em 2006), insere-se na estratégia política do PS. Por isso, não posso deixar de estar de acordo, neste particular, com o que diz Ricardo Costa.

Mas, o mais interessante, e em consequência deste episódio,é que agora parece que se vai ter que esclarecer um ponto (mais um?) obscuro da nossa querida Constituição: se uma legislatura pode ter mais de 4 sessõs legislativas, pois os constitucionalistas encontram-se divididos. Vejamos o que diz a Constituição:
CAPÍTULO III
Organização e funcionamento

Artigo 171.º
(Legislatura)

1. A legislatura tem a duração de quatro sessões legislativas.

2. No caso de dissolução, a Assembleia então eleita inicia nova legislatura cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da eleição.
Desde já digo que não sou jurista, pelo que não vou brincar aos constitucionalistas. Os meus comentários têm apenas um outro objectivo que é o demonstrar a falta de clareza que por vezes é produzida pelo poder legislativo.

No caso deste artigo, temos Vital Moreira que, como refere nesta entrada, considera possível, em certos casos de dissolução, que a legislatura tenha 5 sessões legislativas.

Por outro lado, Jorge Miranda pensa que a nova legislatura só começa em 2006.

Será que não se poderia redigir de um modo mais claro este artigo? Apesar de tudo, numa opinião de um não jurista (realço isto pois na interpretação de um texto entram outros factores que não apenas os linguísticos), inclino-me mais para a sua hipótese devido à expressão "inicialmente acrescida". No artigo 174.º pode ler-se:
Artigo 174.º
(Sessão legislativa, período de funcionamento e convocação)

1. A sessão legislativa tem a duração de um ano e inicia-se a 15 de Setembro.

2. O período normal de funcionamento da Assembleia da República decorre de 15 de Setembro a 15 de Junho, sem prejuízo das suspensões que a Assembleia deliberar por maioria de dois terços dos Deputados presentes.

[...]
Numa primeira leitura,lendo o n.º 2 do artigo 171.º juntamento com o lido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 174.º, penso que a X legislatura começou a 10 de Março de 2005 (1.ª sessão plenária), sendo o tempo que medeia entre 10 de Março e 15 de Setembro aquele referido como o "necessário para se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da eleição", continuando depois em 15 de Setembro essa sessão legislativa por mais um ano até Setembro de 2006.

No entanto, Vital Moreira, como se poder ler aqui conclui que:
Nesse caso, a legislatura parece compreender 5 sessões legislativas (não apenas 4), visto que o período sobrante da sessão legislativa em curso à data da eleição haverá de constituir uma sessão legislativa autónoma da nova Assembleia.
Pelo excerto transcrito não consigo ver como Vital Moreira chega a esta conclusão (mas o objectivo desta entrada de Vital Moreira era de provar que tinha esta opinião há já muito tempo, não o de explicar o porquê da sua opinião), embora numa outra entrada adiante algumas das suas razões (embora não me convençam muito; deve haver outras).

Ora, é certo, que o n.º 2 do artigo 171.º não diz que o tempo sobrante da anterior sessão legislativa é acrescentado à 1.ª sessão legislativa da nova legislatura, diz apenas que à nova legislatura será acrescentado esse tempo sobrante. Se por sessão autónoma ou sessão prolongada, nada está escrito explicitamente.

Esta redacção foi introduzida na revisão constitucional de 1982 (artigo 174.º), pois o posterior preceito constitucional impunha eleições legislativas intercalares, pois a dissolução do parlamento não fazia terminar a legislatura, cf artigo 174.º. Por isso, Sá Carneiro, com um intervalo inferior a um ano teve que ganhar duas eleições com maioria absoluta (Dezembro de 1979 e Outubro de 1980).

Mas, sem dúvida, que esta redacção não foi a mais feliz, pois não esclarece de modo definitivo a questão da integração do tempo sobrante na nova legislatura. E neste aspecto estou já a contar com uma noção não linguística referida por Vital Moreira aqui, de que "as regras especiais prevalecem sobre as regras gerais". Se assim não fosse, a questão nem sequer se colocava.

Por aqui se vê que nenhuma análise de texto se pode fazer apenas tendo em conta a vertente linguística, pois o conhecimento extralinguístico (em diversos aspectos) é importante para se conseguir chegar a uma análise correcta. Talvez por isso não seria pedir demais aos legisladores que utilizassem uma linguagem mais rigorosa, não apenas no termos técnicos necessários, mas também rigorosa ao nível da sua construção, tornando os textos mais transparentes?

Comentários

pdasilva disse…
...inteiramente de acordo!

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