Da Ruralidade
Das análise do mapa eleitoral americano, uma análise recorrente que se ouve é que a América rural e profunda (ignorante e inculta segundo esses senhores) votou esmagadoramente Bush, enquanto a América culta, educada, cosmopolita (a Costa Leste acima da Virgínia e a Região industrial dos grandes lagos) teria votado Kerry.
A imagem que estes analistas querem passar é a de que os americanos cultos votaram nos democratas e o americanos pouco mais do que grunho votaram Bush. Como todas as análises reducionistas, ela não poderia ser mais grosseira e errada.
Em primeiro lugar, parece-me que há aqui um complexo que todos sabemos ser bem de esquerda: o elitismo. Desde o século XVIII que a esquerda sofre deste complexo: eles pensam, embora não o digam abertamente, que apenas os iluminados deveria dirigir os países. Isto é, acham que os outros não capazes de verem o que é bom para o país porque não pensam como eles. Só quem pensa como eles é que é culto e pode ter uma palavra a dizer no governo dos países.
Já por várias vezes, este complexo se manifestou no passado, mesmo em Portugal. Veja-se o caso da Lei eleitoral da 1.ª República de 1913:
Com a República abandona-se o sufrágio censitário, mas mantém-se-lhe carácter restrito, exigindo-se 1.º, em alternativa, um requisito capacitário (saber ler e escrever) ou um qualidade social (ser chefe de fam.), com o dec. de 11.4.1911, e depois sempre e necessariamente o requisito capacitário (Lei n.º 3, de 3.7.1913). O Governo de Sidónio Pais, procurando encontrar uma base eleitoral desvinculada dos partidos tradicionais (o preâmbulo do dec. 3907 afirma que a percentagem de analfabetos na população portuguesa, seria na altura de 70%), tornou o sufrágio universal para os homens (decs. n.ºs 3907 e 3997, de 11 e 30.3.1918). Mas o sistema deixou de vigorar com o dec. n.º 5184, de 1.3.1919, que restabeleceu o regime da Lei .º 3.
(Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 1968)
Que se pode concluir deste passo? O governo republicano tentou, através da lei, evitar que as pessoas do campo e mais pobre votassem, por pensarem que elas se oporiam às suas políticas e seriam influenciadas pelo clero. Claro que Sidónio, como precisava de legitimar a sua posição, alargou o voto, mas passado o sidonismo, os republicanos votaram a restringir o direito de voto, fazendo com que votassem, principalmente, as pessoas da cidade e com instrução, que era onde eles pensava ter, e tinham mesmo, mais apoiantes. Mas chamar democracia a isto, enfim...
Por vezes os comentados que insistem em dividir a América rural da America urbana parece-me que gostava de proceder como os dirigentes da nossa 1.ª República: dar voto só nos locais onde lhes parecesse que venceriam.
Mas, mesmo que esta tese reducionista de que só os não muito inteligentes votariam em Bush (partilhada pelo que parece até por Vital Moreira) fosse verdade, será que a democracia estaria em perigo. Será que aqueles que são "grunhos" não podem decidir também o destino do seu país? Isto faz-me lembrar o que li num livro de José Rodrigo Ferreira, A Democracia na Grécia Antiga (Coimbra, Minerva, 1990) sobre as críticas que os coevos faziam à democracia ateniense de ser incompetente porque com o seu sistema de tiragem à sorte para muitos dos cargos políticos, pessoas incapazes poderiam ir para lugares de decisão. Diz Ribeiro Ferreira (p. 207):
Se passarmos agora a analisar a acusação de incompetência, um pouco de reflexão permite concluir (...) que a ignorância não era assim tão supina nem apresentava consequências da gravidade que apregoam.
A tiragem à sorte para os cargos que (...) era uma das marcas distintivas da democracia ateniense, dá (...) de algum modo razão à denúncia. Observe-se, contudo, que, além de a incompetência não ter sido assim tão grave e danosa, a democracia criou um conjunto de medidas e mecanismos que plhe permitissem manter o princípio da tiragem à sorte que considerava essencial, mas lhe minorassem os riscos daí derivados: a colegialidade que atenuava a gravidade de um possível erro e precavia contra a incompetência ou pior qualificação de alguns elementos; a obrigação de os futuros magistrados se sujeitaram, antes da posse, a juramentos e à verificação dos seus títulos e comportamento cívico; não aplicação de tiragem à sorte em campos - como é o caso dos cargos militares ou financeiros -, em que a colegialidade não era possível ou em que determinada qualificação era requerida.
Tal como a acusação de incompetência à antiga democracia directa grega é injusta (de modo geral), também a imputação de que a América rural que elege Bush é inculta e incapaz de discernir o que é o melhor para a América é também desajustada. A insistência nesta tecla da América profunda serve, para estes analistas, não para descrever um facto, mas para desqualificar a escolha de Bush. E isso é, no mínimo, de uma total desonestidade intelectual. Os valores "progressistas" per si não são melhores do que os valores "conservadores". E isto é uma coisa que a esquerda, tanto americana como europeia, ainda não compreendeu.
Post scriptum. No decorrer da escrita deste artigo, Kerry telefonou a Bush, reconhecendo a sua derrota. Bush é o vencedor, sem qualquer dúvida.
A imagem que estes analistas querem passar é a de que os americanos cultos votaram nos democratas e o americanos pouco mais do que grunho votaram Bush. Como todas as análises reducionistas, ela não poderia ser mais grosseira e errada.
Em primeiro lugar, parece-me que há aqui um complexo que todos sabemos ser bem de esquerda: o elitismo. Desde o século XVIII que a esquerda sofre deste complexo: eles pensam, embora não o digam abertamente, que apenas os iluminados deveria dirigir os países. Isto é, acham que os outros não capazes de verem o que é bom para o país porque não pensam como eles. Só quem pensa como eles é que é culto e pode ter uma palavra a dizer no governo dos países.
Já por várias vezes, este complexo se manifestou no passado, mesmo em Portugal. Veja-se o caso da Lei eleitoral da 1.ª República de 1913:
Com a República abandona-se o sufrágio censitário, mas mantém-se-lhe carácter restrito, exigindo-se 1.º, em alternativa, um requisito capacitário (saber ler e escrever) ou um qualidade social (ser chefe de fam.), com o dec. de 11.4.1911, e depois sempre e necessariamente o requisito capacitário (Lei n.º 3, de 3.7.1913). O Governo de Sidónio Pais, procurando encontrar uma base eleitoral desvinculada dos partidos tradicionais (o preâmbulo do dec. 3907 afirma que a percentagem de analfabetos na população portuguesa, seria na altura de 70%), tornou o sufrágio universal para os homens (decs. n.ºs 3907 e 3997, de 11 e 30.3.1918). Mas o sistema deixou de vigorar com o dec. n.º 5184, de 1.3.1919, que restabeleceu o regime da Lei .º 3.
(Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 1968)
Que se pode concluir deste passo? O governo republicano tentou, através da lei, evitar que as pessoas do campo e mais pobre votassem, por pensarem que elas se oporiam às suas políticas e seriam influenciadas pelo clero. Claro que Sidónio, como precisava de legitimar a sua posição, alargou o voto, mas passado o sidonismo, os republicanos votaram a restringir o direito de voto, fazendo com que votassem, principalmente, as pessoas da cidade e com instrução, que era onde eles pensava ter, e tinham mesmo, mais apoiantes. Mas chamar democracia a isto, enfim...
Por vezes os comentados que insistem em dividir a América rural da America urbana parece-me que gostava de proceder como os dirigentes da nossa 1.ª República: dar voto só nos locais onde lhes parecesse que venceriam.
Mas, mesmo que esta tese reducionista de que só os não muito inteligentes votariam em Bush (partilhada pelo que parece até por Vital Moreira) fosse verdade, será que a democracia estaria em perigo. Será que aqueles que são "grunhos" não podem decidir também o destino do seu país? Isto faz-me lembrar o que li num livro de José Rodrigo Ferreira, A Democracia na Grécia Antiga (Coimbra, Minerva, 1990) sobre as críticas que os coevos faziam à democracia ateniense de ser incompetente porque com o seu sistema de tiragem à sorte para muitos dos cargos políticos, pessoas incapazes poderiam ir para lugares de decisão. Diz Ribeiro Ferreira (p. 207):
Se passarmos agora a analisar a acusação de incompetência, um pouco de reflexão permite concluir (...) que a ignorância não era assim tão supina nem apresentava consequências da gravidade que apregoam.
A tiragem à sorte para os cargos que (...) era uma das marcas distintivas da democracia ateniense, dá (...) de algum modo razão à denúncia. Observe-se, contudo, que, além de a incompetência não ter sido assim tão grave e danosa, a democracia criou um conjunto de medidas e mecanismos que plhe permitissem manter o princípio da tiragem à sorte que considerava essencial, mas lhe minorassem os riscos daí derivados: a colegialidade que atenuava a gravidade de um possível erro e precavia contra a incompetência ou pior qualificação de alguns elementos; a obrigação de os futuros magistrados se sujeitaram, antes da posse, a juramentos e à verificação dos seus títulos e comportamento cívico; não aplicação de tiragem à sorte em campos - como é o caso dos cargos militares ou financeiros -, em que a colegialidade não era possível ou em que determinada qualificação era requerida.
Tal como a acusação de incompetência à antiga democracia directa grega é injusta (de modo geral), também a imputação de que a América rural que elege Bush é inculta e incapaz de discernir o que é o melhor para a América é também desajustada. A insistência nesta tecla da América profunda serve, para estes analistas, não para descrever um facto, mas para desqualificar a escolha de Bush. E isso é, no mínimo, de uma total desonestidade intelectual. Os valores "progressistas" per si não são melhores do que os valores "conservadores". E isto é uma coisa que a esquerda, tanto americana como europeia, ainda não compreendeu.
Post scriptum. No decorrer da escrita deste artigo, Kerry telefonou a Bush, reconhecendo a sua derrota. Bush é o vencedor, sem qualquer dúvida.
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