E como será o prazo de pagamento

Leio na TSF Online que a Procuradoria-Geral da República está com falta de dinheiro que até põe em causa a conclusão de alguns processos. E dá-se um exemplo:

Um dos mais complicados dos últimos anos está em risco de não ser terminado por falta de dinheiro. Trata-se de uma burla ao IVA, onde o Estado português perdeu milhares de euros.

Neste caso há arguidos portugueses e estrangeiros, sendo preciso traduzir os três volumes da acusação para norueguês, o que está a prejudicar a fase de instrução.

E pornto, pensam os meus leitores, lá voltamos à tradução. É isso, mas neste caso numa outra vertente. O do mundo real em que os tradutores trabalham.

Já tenho muitos anos de tradução no mercado português e, francamente, se algum tribunal/ministério público português me pedisse para fazer uma tradução deste tipo, duvido que aceitasse. Mas antes de dizer porquê, façamos uma pequena digressão., pois não sei se toda a gente compreende todas as implicações que traduções deste género trazem consigo.

Um processo de burla ao IVA com três volumes é um verdadeiro projecto de tradução. Para além de não saber quantas páginas e/ou palavras representarão esses volumes, tudo apontam para ser uma quantidade considerável. Para além do seu tamanho, que não é pormenor dispiciendo, há ainda a questão da complexidade. Já perdi a conta às traduções jurídicas que fiz entre o francês e o português (pedidas por uma das partes ou por tribunal francês através de uma agência de tradução). Desde a requerimentos a recursos, passando por sentenças diversas (de 1.ª instância ou de relação) já fiz um pouco de tudo. E, apesar da frança influenciar quase tudo em Portugal, a nível do Direito há muitas diferenças e, frequentemente, não correspondência directa. Torna-se necessário explicar, compreender cada um dos sistemas para depois poder transmitir o que está lá dito. Ainda para mais tem que se usar de um rigor terminológico enorme, para não estarmos a dizer barbaridades.

Voltemos aos tais três volumes para norueguês. Primeira dificuldade: a língua de chegada. Quantos tradutores de português-norueguês competentes haverá (tanto em Portugal, como na Noruega, como em qualquer outro lado; as novas tecnologias eliminam o problema da distância)? Depois, se o processo é urgente, que prazo terá o tradutor? Se o prazo é curto, dar o trabalho a mais do que um tradutor? Mas, devido à complexidade, como controlar a homogeneidade do trabalho, consistência terminológica? Certamente haverá um coordenador. Ou seja, na verdade, não pode ser nada barata esta tradução. E não falei ainda do caso da tarifa a aplicar, pois, suponho que sendo uma língua não muito solicitada, há tendência para ter um custo mais caro.

Por tudo isto chego a ponto de partida: quem poderá aceitar este trabalho. É que perante este rol de premissas, é preciso garantia de que o pagamento será efectuado e em devido tempo. É que o tradutor, habitualmente, não tem outros meios de rendimento. Será que a Procuradoria aceita pagar adiantado, parcialmente. Ou, depois do trabalho efectuado, o pagamento ir-se-á arrastar durante meses? É que eu conheço casos de tribunais que não pagaram ainda pequenos trabalhos de tradução. Como será o caso da Procuradoria?

É que isto de tradução não é só uma questão de dinheiro, mas também o é.

Comentários

Dinamene disse…
Anos, caro Rui. Tribunais, câmaras, Estado. E há mais, mas... p.e., a Gulbenkian, não há muito tempo, achava , na pessoa de um seu representante, que era necessário apenas papel e lápis. Foi a resposta taxativa que me deram.

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