Eça de Queirós

Já que nos algumas das últimas entradas trataram de efemérides, não queria deixar de passar esta: a passagem do 105º aniversário da morte de Eça de Queirós, ocorrida a 16 de Agosto de 1900 em Paris.

De tudo quanto li de Eça, gosto, sabe-se lá porquê, particularmente do Primo Basílio - se calhar, o facto de o meu livro preferido dele não ser Os Maias deve-se ao pequeníssimo mas importante pormenor de durante alguns anos o ter ensinando quase às fatias (pois o programa assim o exige) aos alunos do secundário (depois viu-se, no ano passado, numa passagem que a leitura global teria resolvido a dificuldade do exame de Português A, a propósito do gato, muito disparate se leu, pois os alunos decoram os episódios e pouco mais) - apesar de ser um Eça ainda mais novo.

Neste Primo Basílio, Eça criou a famosíssima personagem do Conselheiro Acácio, símbolo de toda a mediocridade que grassava no sistema político da época e que mesmo assim chegava a lugares de grande improtância (não, não sejam mauzinhos, não estou a pensar no Armando Vara, esse não chega ainda ao Conselheiro Acácio).

Nestas páginas d'O Primo Basílio, o Conselheiro Acácio, recebendo os seus amigos em casa, mostrou-lhes o seu escritório, o seu sanctum sanctorum, decidiu lê-lhes um dos seus textos do seu novo livro - «Descrição das Principais Cidades do Reino e Seus estabelecimentos » - abrindo-o na sua página de Coimbra.
[O Conselheiro] Escolheu então, «como mais própria para dar a ideia da importância do trabalho», a página relativa a Coimbra. Assoou-se, colocou-se no meio da saleta, de pé, com as folhas na mão e, com uma voz cheia, gestos pausados, leu:
- «Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposentos, está a sábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe de amor, o saudoso Mondego. E em seus bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e outras aves canoras soltam seus melancólicos trilos. Quando vos aproximais pela estrada de Lisboa, onde outrora uma bem organizada mala-posta fazia o serviço que o progresso hoje encarregou à fumegante locomotiva,vêde-la branquejando, coroada do edifício imponente da Universidade, asilo de sabedoria. Lá campeia a torre com o sino, que em sua folgazã linguagem a mocidade estudiosa chama a cabra. Para além logo uma copada de árvore vos atrai as vistas: é a celebrada árvore dos Dórias, que dilata seus seculares ramos no jardim de um dos membros desta respeitável família. E avistais logo, sentados nos parapeitos da antiga ponte, em seus inocentes recreios, os briosos moços, esperança da pátria, ou requebrando galanteios com as ternas camponesas que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo em suas mentes os problemas mais árduos de seus bem elaborados compêndios...»
O Primo Basílio, Ed. Livros do Brasil, pp. 328-329)
Este texto do Conselheiro Acácio é uma sucessão de lugares comuns, o arquétipo de um Romantismo degenerescente. Vejam só a profusão e a qualidade dos adjectivos. Por toda a obra, o Conselheiro recorre a lugares comuns que ele repete, nas suas conversas, como opiniões pessoais, recorrendo ainda a um vocabulário mais erudito do que o da maioria das personagens. O seu idolecto pessoal caracteriza um tipo de político (que, com algumas variantes, chega até aos dias de hoje, como, é bom dizer, também já existia antes de Eça o ter passado ao papel).

Eça não se resume aos Maias que os nossos alunos (não) lêem no Ensino Secundário (ou se lêem, fazem-no às postas, na maioria dos casos). O Primo Basílio, se bem que um pouco mais rígido no seguimento do credo naturalista, é um livro que ainda vale bem a pena ler.

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